Foto: Diego Vara / Agencia RBS
Paulo César Fonseca do Nascimento, 37 anos, é Tinga. Não fosse um jogador famoso no país e no Exterior, com perfeitos serviços prestados a dupla Gre-Nal, ele seria mais um brasileiro da periferia, no seu caso a porto-alegrense Restinga, eclipsado pelo preconceito social.
O futebol salvou Tinga, mesma sorte não tiveram muitos amigos de infância abatidos pelas drogas e pelo tráfico. A bola ofereceu um novo horizonte, que ele aproveitou, seguiu e desfrutou – nunca só. Tirou a mãe, Nadir, 51 anos, das faxinas. Recuperou o pai, Valmor, 54 anos, que havia abandonado a família. Ofereceu nova vida aos três irmãos. Casou com Milene, 32 anos, e ganhou Davis, 12 anos, e Daniel, oito. Ao mesmo tempo, investiu num projeto social na periferia. Ele saiu de lá, venceu, voltou e quer que outros sigam o roteiro.
Como a família reagiu quando soube que você tinha decidido deixar o futebol?
A família nunca questionou nada na minha carreira nestes 19 anos. Preparava as malas quando eu dizia "vamos sair." Todo mundo aceitava numa boa, sem queixas, sem problemas. Meus filhos deixavam as aulas e os colegas. Minha mulher largava os cursos. Ela sempre estudou muito. Sei que me falta estudo, mas ela me equilibrou neste sentido. Ela nunca reclamou por largar um projeto pela metade. Nunca. Vamos para Portugal? "Vamos". Rio? "Boa, legal". Alemanha? "Claro. Não tem problema". Voltar para Porto Alegre? "Claro".
E como os filhos agiam nestes momentos?
Quando resolvi deixar o Cruzeiro, em Belo Horizonte, reuni os dois guris e disse: "Ó, o pai vai parar, não vai mais jogar. Acabou. Ficarei mais perto de vocês agora". As crianças começaram a chorar, emocionados. Foi aquela choradeira geral, eu, todos. Eles gostavam muito de Belo Horizonte, mas querem mais ainda Porto Alegre.
Quem sentiu que era a hora de guardar as chuteiras. Você ou eles?
Eu senti. Eles também começaram a não gostar deste vai e vem, da vida de jogador de futebol, viagens, concentrações, ausências prolongadas. Eu disse: "Para aí". Eles se doaram a vida inteira, nunca falaram nada. Eu poderia ter ficado mais um pouco nos clubes nos quais defendi. Sempre fiz bons contratos. Podia segurar um pouco. Sair depois. A família nunca pediu para eu ficar, sempre acompanhou as minhas decisões.
Assista ao trecho em que Tinga faz o anúncio:
A família sente quando o jogador começa a querer trocar de endereço?
Minha mulher sentia quando chegava a hora de sair. Quando surgia algum problema, o treinador começava a me colocar na reserva e eu ficava fora dos jogos, ela já sabia, entendia. Começava a arrumar as malas (risos).
Desta vez, a decisão é sem volta?
Depois que eu sofri uma lesão (fratura na tíbia e na fíbula da perna direita, em agosto do ano passado), tive a certeza. Fiquei quatro meses me tratando. Ao mesmo tempo, vi muito futebol pela TV, ou seja, de fora para dentro. Foi quando eu comecei a fazer um balanço da carreira. Decidi logo e já fui me acostumando. Sabe que eu agradeço muito a Deus pela lesão?
Sério?
Sim, pelo momento que eu tive o problema, nesta etapa da minha vida e da carreira. Pude refletir, já com a carreira consolidada.
Explica melhor.
Eu sou daqueles que entende que se a pessoa tem muitos problemas, tem também muitas soluções.
Você pediu conselhos antes da decisão?
Não. Foi tudo comigo mesmo. Eu sempre tive o sonho de terminar a carreira da melhor forma possível. De sair bem do clube, de encerrar com conquistas, de estar bem comigo mesmo. Sempre quis jogar o máximo de tempo, sem esquecer de cuidar da minha imagem e do corpo. É quase impossível um jogador chegar aos 37 anos defendendo um time grande. Só joga quem passar um tempo fora do Brasil.
Por quê?
Esta enorme sequência de jogos no Brasil arrebenta o atleta. Faz com que o jogador que começa com 18 anos fique todo arrebentado aos 28 anos. No país, quanto mais tempo o jogador fica no clube, mais querem que ele deixe o clube. Na Europa, é diferente, quanto mais tempo há mais respeito e consideração.
Na Europa, a vitória é igual. A cobrança é a mesma.
Aprendi mais nas derrotas do que nas vitórias. O que ensina mesmo é o choro. Não é a alegria ou o sorriso. Os títulos escondem muitas coisas erradas. No barulho das festas, não se nota muitas coisa. Eu aprendi muito com o choro.
Antes do sucesso, sua vida foi difícil?
Muito difícil, aliás, como é a vida da maioria dos brasileiros. Fui criado só pela minha mãe. Meu pai nos largou quando eu tinha sete anos, o que me deu um aprendizado de vida. Minha mãe trabalhava sete dias por semana, sem folga, zero de lazer. Lembro-me de chegar em casa no final da tarde, suado, depois de uma pelada, e ver a minha mãe saindo para trabalhar em seguida, na sexta, no sábado ou no domingo. Ela trabalhava à noite, fazia dupla jornada. Varava a madrugada nas faxinas no Teresópolis Tênis Clube. No outro dia, chegava em casa às 6h, dormia até às 10h e depois ia trabalhar de novo. Quando eu cresci, até fui junto algumas vezes às festas. Ela conseguia uns convites (risos), mas não parava de trabalhar.
Foto: Roberto Stuckert Filho/PR, divulgação. 13/03/2014
Ex-árbitro Márcio Chagas, presidente Dilma Rousseff e Tinga
Foto: FULANODETAL
Esta é uma das suas lembranças mais fortes?
Eu sempre me recordo destes dias de infância e adolescência, uma lembrança quase diária. Tudo está muito vivo na minha cabeça. Essa foi a minha base familiar, que foi muito boa, mesmo com meu pai separado de nós. A mãe trabalhava o dia inteiro. Ainda estão nos meus ouvidos as frases dela nas manhãs dos finais de semana: "Não faz barulho, deixa a mãe dormir um pouco, tenho que trabalhar mais tarde".
Foi difícil?
Muito, mas às vezes havia umas recompensas, pequenas, mas definitivas. Ela chegava em casa com uma sacola, com comidas diferentes, frutas, potes de iogurte. A gente não tinha iogurte e frutas frescas todos os dias. Era um luxo distante. Isto ficou na minha cabeça na infância e na adolescência. Pensava: "Trabalhar é legal. A mãe sai para trabalhar e traz coisas boas. Quando crescer, vou trabalhar", pensava.
E o seu pai?
Ele vivia bem, trabalhava na antiga CRT, ganhava legal, mas nós passávamos dificuldades. Era uma pessoa muito distante de nós.
Como ele está hoje?
Quando eu jogava no Grêmio, em 2001, chegou um taxista no Olímpico. "Corre, meu. Teu pai tá mal. Ele dirigiu na contramão na Avenida Ipiranga". Eu fui atrás dele então. Decidi, era meu pai, cara. Descobri que ele tinha surtado. Ele estava com um problema mental. A outra família o havia largado. Chamei os médicos e o internamos numa clínica. Ele passou um tempo em repouso e melhorou um pouco.
E depois?
Eu o levei para a minha casa. Ele tomava muito remédio e às vezes surtava. Minha mulher estava grávida de seis meses e começou a ficar preocupada. Mas nunca falou: "Tira ele de casa". Entendia o problema, foi companheira, dava força. Mas eu, na concentração, nas viagens, antes dos jogos, ficava preocupado. Perdia o foco.
Foto: Luiz Armando Vaz/Agência RBS. 04/08/1997
No Grêmio, em 1997, após o gol no Sport que o projetou para o Brasil
O que você fez?
Fui conversar com a minha mãe, que morava na primeira casa, ao lado do meu irmão e da minha irmã, que eu comprei com o dinheiro que ganhei no Japão. Não aguentava mais. Rodei Porto Alegre inteira em busca de um lugar para o meu pai ficar. Pai, mas um homem com quem eu não tinha intimidade alguma. Meu dinheiro também estava acabando, os gastos com ele foram grandes. Estourou meu orçamento.
E o que a sua mãe falou?
Ela foi simples e direta. Me emociono até hoje. Disse: "Olha, filho, deixe ele aqui que eu vou cuidar. Vai, vai jogar, trabalhar, deixa comigo". Aquilo foi uma surpresa. Eu bati na porta da minha mãe numa hora de desespero. Não conseguia mais pensar em nada. Imaginava um não da minha mãe. Pensa bem. Uma mulher ser largada 20 anos atrás pelo marido e, de uma hora para outra, receber o homem de volta.
É uma decisão delicada.
Me coloquei no lugar dela. Imagine se acontecesse o mesmo comigo? Será que eu aceitaria a mulher de volta. A minha mãe me surpreendeu demais, cara. Ficou dois anos cuidando dele. O gesto da minha mãe foi um dos maiores exemplos que eu tive nas minhas quase quatro décadas de vida. Hoje eu pago um lugar para ele morar. Sempre tem alguém cuidando dele.
Foi um grande gesto mesmo. Você recebeu ajuda quando era mais jovem?
Eu fui muito ajudado. Meus amigos me davam passagem para treinar, uns trocados. Muitos amigos, gente da minha geração, estão mortos. Eles nunca deixavam chegar nada de ruim até mim. Outros caras vinham me oferecer droga. Os amigos chegavam perto e falavam: "Esse aí não, esse é especial". Fui muito protegido na Restinga na minha adolescência. Eu tenho uma consideração muito grande com o pessoal da Tinga, sempre volto, procuro estar lá, ajudar. Os caras nunca, nunca mesmo, deixaram que eu provasse algo ilícito. Eu fui aprendendo.
Quando você descobriu que poderia vencer na vida?
É engraçado. Eu sempre fui criado muito sozinho. Eu cuidava da minha vida. Não tinha regra. Fui disciplinado pelo futebol. Eu acredito muito no futebol como ferramenta para educar os jovens. O futebol me levou a ter regras no dia a dia. Me ofereceu limites.
Quando sua mãe descobriu que você poderia ter uma carreira vitoriosa?
Lembro que, quando disputei campeonatos das categorias de base pelo Grêmio, eu falava para a minha mãe: "Bah, mãe, eu tenho que jogar, viajar. Vou ficar uns dias fora". Ela sorria. Quando fui morar na concentração do Estádio Olímpico, foi um alívio em casa. Minha mãe tinha uma boca a menos para alimentar. Eram três bocas, ficaram duas.
Você era bem tratado na base gremista?
Eu fui muito bem cuidado no Grêmio. Aprendi muito. Mais adiante, quando fizeram a primeira matéria comigo, no dia que eu ia estrear no time principal, minha mãe ainda achava que jogar futebol era disputar uma pelada na esquina. No dia em que saiu a matéria no jornal, quando convidei a mãe para ir ao jogo, ela estranhou. "Mas é aquele jogo que aparece na TV, Paulo César"? (risos).
Foto: Fernando Gomes/Agência RBS. 08/06/2001
Eduardo Costa, Cláudio Pitbull, Anderson Polga e Tinga posam para foto no Olímpico
Com a camisa gremista veio à fama?
Não, na época, eu só queria jogar. Não pensava na carreira, em contratos milionários, na fama, nos carrões ou jogar no Barcelona ou no Real Madrid. Meu único objetivo na época era dar uma casa para a minha mãe. Não fazia grandes planos. Era o meu sonho desde pequeno, desde as peladas. Hoje, com 15 anos, o piá tem toda a carreira já desenhada na cabeça.
Como foi aventura no Japão em 1999?
Me assustei no começo. Era muito novo, só 20 anos. A proposta era de um contrato de seis meses. Se no Grêmio eu recebia R$ 3 mil, no Kawasaki Frontale ganharia US 30 mil. Não tinha como não ir. Na assinatura, foi tudo festa, só pensava no salário. Mas quando você viaja, chega ao clube e faz exame médico, nasce o medo. Quando cheguei, nos primeiros dois dias, naquele país tão estranho, eu só chorava. Chorava de pura solidão.
Problemas com o idioma?
Não sabia falar japonês ou inglês e não sei nem falar português direito. Nunca imaginei tentar falar outra língua. Era diferente de hoje, quando a internet conecta o mundo inteiro. Na época, eu tinha que ligar para Embratel que, por sua vez, contatava o Brasil. Eu era sozinho mesmo. Minha namorada, atual mulher, foi três meses depois e ficou 90 dias. Como ela só tinha 15 anos, não podia ficar muito tempo porque não conseguia um visto mais longo.
Como eram os contatos com o Brasil?
Não tinha nem TV. Não entendia nada dos programas japoneses. Não via nada sobre o Brasil. Quando tentava acessar a internet, tudo era muito lento. Podia tomar um banho, fazer um feijão, que eu levei, claro, que a notícia não aparecia na tela do computador. Eu sofria. Mas depois comecei a entender como ligar direto para o Brasil.
Foto: Valdir Friolin/Agência RBS. 16/08/2006
Em 2006, pelo Inter, em sua primeira conquista da Libertadores
Você ligava muito para Porto Alegre? Queria matar a saudade?
Muito mesmo, sabe, a solidão bate forte lá fora. Eu ligava às 8h, com voz de sono, e pegava todos os amigos empolgados. Eram 20h no Brasil. Ou ligava à noite no Japão, cedo no Brasil, e ninguém queria conversar, todos estavam a caminho do trabalho.
O que os amigos diziam?
O meu empresário avisou aos meus amigos. "Quando o Tinga ligar do Exterior, especialmente entre janeiro, fevereiro e março, já que ele gosta muito de praia, digam que o tempo está ruim, que chove sem parar e que faz frio". Eu estranhava, pô, ninguém na praia, mas tudo bem, eram os amigos que falavam.
Era mentira?
Quando eu voltei, eles me contaram a verdade. "Tinga, não leva a mal, pediram para falar que o tempo estava ruim. Era para te deixar tranquilo". Este é só um exemplo dos pequenos detalhes que ajudam o cara a se concentrar no trabalho no Exterior e não querer voltar o mais rápido possível.
Você teve uma má experiência no Rio de Janeiro no ano 2000?
Sofri um pouco no Rio, logo depois de voltar da Ásia. Jogava no Botafogo e não recebia. Com o dinheiro do Japão comprei dois imóveis em Porto Alegre. Torrei o resto das economias. Estava na idade do pavão, um pouco exibido. Exagerei. Achava que tudo ia se arrumar, mas quando vi estava liso. Aí, caiu a ficha. Minha mulher me chamou. "Como é que é, você nunca tem dinheiro?" Eu não recebia do clube. Joguei oito meses, recebi quatro. Mas isto me levou a ver a realidade do futebol. Quando você tiver, guarda, porque ninguém sabe o que será o dia de amanhã.
O que você aprendeu na Alemanha entre 2006 e 2010?
Eu aprendi tudo, tudo. Não sou nada hoje, mas o nada que eu sou devo a Alemanha. Amadureci muito. Uni o que havia aprendido com a minha mãe e a experiência com o futebol. Pensei, refleti e concluí que eu estava certo. Que o negócio era mesmo trabalhar duro, cumprir horário, respeitar todo o mundo. A Alemanha me fez bem como ser humano. Voltei ao Brasil com 32 anos. Joguei mais cinco. Aprendi, me tornei uma pessoa melhor e um profissional mais completo. Se a Alemanha não tivesse aparecido na minha vida, eu teria parado antes.
A passagem do Grêmio para o Inter não mexeu contigo?
Quando eu fui para o Inter pela primeira vez, em 2005, lembro que encontrei dois jogadores que haviam passado pelos dois clubes. Eles falaram: "Tu tá louco, Tinga. Lá, você perdeu, a culpa é tua". Eu tinha chegado todo empolgado. Aí, me deu um choque. Mas, muitos anos antes, eu havia feito três testes no Inter e um no Grêmio.
Você é colorado?
Sim, mas eu sempre via o Mauro Galvão sendo abraçado por torcedores dos dois clubes, ele que foi campeão com as duas camisas. Eu via os fãs pedindo fotos e autógrafos. Pensava: "Deve ser muito legal". Quando eu fui convidado para jogar no Inter, vi como uma oportunidade. Mas não imaginava que seria tão grande, dois títulos de Copa Libertadores. Imaginava um Gauchão. Com todo o respeito, até 2005 esta era a realidade. Mas eu tive grandes conquistas com as duas camisas. Me orgulho muito.
Neste tempo todo que você está no futebol, quase duas décadas, você viu alguém derrubar treinador, seja na dupla Gre-Nal ou em qualquer outra time?
Eu não vi derrubar. Posso dizer, cara, que jogador, às vezes, fica muito chateado com a maneira que o trabalho está sendo conduzido. E então fazem as coisas de qualquer maneira, o que, claro, é errado. Sabe, jogar, mas não estar nem aí com nada. Mas eu sempre fui contra este tipo de posicionamento. Derrubar treinador eu não acredito. O que pode acontecer é desleixo dos jogadores. Agora, combinar e derrubar, eu não creio.
Com a camisa do Cruzeiro você sofreu com o racismo em jogo no Peru, no ano passado. Conta como foi?
Na Peru foi a última vez. Mas já sofri em Caxias, na década passada, quando jogava pelo Inter. Outras vezes também.
O que aconteceu?
Eu pegava na bola e a torcida do Real Garcilaso imitava macaco.
E você?
Quando o jogo terminou, segundos depois, eu saí e estava toda a imprensa me esperando na beira do gramado. Eu pensei: "Bah, os caras vão vir rachando. Perdemos o primeiro jogo da Libertadores, 2 a 1". Me preparei mentalmente para responder a perguntas de praxe. Eu não estava preparado para as perguntas sobre racismo. Aquilo, ao menos na minha cabeça, tinha sido mais um ato. Não que eu ache certo. Mas eu não me abato. Eu acredito em mim como pessoa.
O que você respondeu?
Eu não esperava a pergunta. Me pegaram de surpresa, não sabia direito o que falar, não tinha me preparado. Foi tudo muito rápido. Eu tomei um choque. Aí, eu peguei o gancho da pergunta de um repórter e respondi. Falei "Eu trocaria todas as minhas conquistas e títulos pela igualdade social e racial". Simplesmente fiz isso.
E no vestiário como foi?
Ah, normal, mas quando liguei para a minha casa me falaram da repercussão de tudo. Eu nunca quis fazer nada, só que tudo tomou uma proporção muito grande. No dia seguinte, o pessoal do Cruzeiro me disse que toda a imprensa estava no hotel e queria falar comigo. Eu não queria falar, não tinha nada para falar. Depois, tudo aumentou mais ainda. Mas pensei, como não vou falar, vou ser ingrato com todas as pessoas que um dia me ajudaram ou se importaram comigo.
O que você achou da multa ao clube peruano?
Se fosse R$ 1 milhão ou R$ 1, não seria correto. Não é produtivo. A multa ideal seria envolver o clube numa causa. Mas eu nunca me envolvi, querer fazer disso (do racismo) uma bandeira. Eu aprendi que o preconceito racial existe e é muito grande, mas entendo que o preconceito social grita mais alto. Quando você tem condição, algumas posses, dinheiro, até te aceitam. Quando sou chamado, eu luto por isso. Falo.
A sua família foi impactada?
O meu filho mais velho sentiu muito. Eu sempre joguei em clubes grandes, mas sempre fui um cara muito reservado. Se eu quisesse, com todas as oportunidades que tive, poderia ter aparecido muito mais em casos assim. Mas nunca quis.
Aparecer como?
Fui convidado várias vezes para aparecer em videoclipes musicais que tocavam no tema racismo. Mas o que tem a ver a música com o que eu passei?
O que os seus filhos disseram?
O que assustou meu filho foi o excesso de mídia. Sabia que todo mundo ia olhar para ele diferente na escola nos dias seguintes. Ele chorou bastante, notou a proporção do fato e me perguntou algumas coisas. Quando voltei do Peru, fui direto para casa, reuni minha mulher e os filhos na sala. Cheguei perto deles e disse que tudo poderia acontecer de novo, desta vez, com eles. Mas, pela condição social deles, poderiam fazer a mesma coisa com alguém. Pedi que tomassem cuidado. Aproveitei e fiz um debate com os meninos, que ficaram muito assustados. Mas hoje eles estão legais.
Você estuda?
Faço a Universidade do Futebol, com o professor João Paulo Medina. No dia 28 do mês que vem, vou para a Alemanha. Na minha agenda tem visitas a Berlim e Dortmund. Joguei no Borussia, tenho muitos amigos. Vou passar um tempo na Europa. Depois, ficarei algumas semanas nos Estados Unidos. Vou em busca de informação e formação. Mas tenho outras coisas, negócios como a agência de viagens da minha mulher, a Sieben Tour, e o meu hotel, em Gramado.
Empresários o procuram, fazem proposta?
Empresas me procuram para trabalhar, querem usar meu nome e não pedem só palestras. Não é para investir, mas para usar a minha imagem. Mesmo sem ter estudado, tenho só o primário, conheço os processos. Fiz vários cursos, inglês, alemão, oratória, porém nunca terminei. Gastei um monte de dinheiro, só que aproveitei apenas parte deste aprendizado. Nunca chegava até as provas finais, só que sempre ficava algo. Hoje, uso o que aprendi de gestão nos meus negócios.
O que você não quer no futebol?
Ser técnico e empresário.
O que você quer?
Acho que seria legal fazer um trabalho de acompanhamento em um clube, observar jogadores no país e no Exterior. Ter certeza na hora da contratação. Errar menos, buscar o jogador certo. O futebol precisa de gente assim, que conhece o mercado, que sabe tratar com os jogadores e que pode avalizar as contratações com mais certeza. Nesta crise, não dá para errar mais.
Um cara que é chamado de ministro pelos jogadores, como acontecia no Cruzeiro, poderia se transformar num grande empresário de futebol.
Ajudei muita gente até porque fui muito ajudado na minha vida. Ajudei, mas nunca pedi um centavo. Já dei dicas para treinadores, jogadores e dirigentes. Vou ajudar o Bom Senso (o movimento de jogadores que quer transformar as estruturas do futebol brasileiro). O futebol vai mudar. Está caro dentro e fora de campo. Não pode continuar assim.
Qual a cidade que você escolheu para morar?
Ah, Porto Alegre. É a minha cidade. Quero ver meus filhos crescendo nela. Um dos guris já treina na base do Inter. Desejo ver o meu projeto social, o Aspirantes de Cristo, cada vez melhor e mais solidificado, com futebol, música e dança. Nós não cuidamos só das crianças, mas de toda família. Este projeto é o meu bebê. Vi nascer e agora quero ver crescer.
Como você sai do futebol?
Ileso e pela porta da frente.
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Paulo César Fonseca do Nascimento, 37 anos, é Tinga. Não fosse um jogador famoso no país e no Exterior, com perfeitos serviços prestados a dupla Gre-Nal, ele seria mais um brasileiro da periferia, no seu caso a porto-alegrense Restinga, eclipsado pelo preconceito social.
O futebol salvou Tinga, mesma sorte não tiveram muitos amigos de infância abatidos pelas drogas e pelo tráfico. A bola ofereceu um novo horizonte, que ele aproveitou, seguiu e desfrutou – nunca só. Tirou a mãe, Nadir, 51 anos, das faxinas. Recuperou o pai, Valmor, 54 anos, que havia abandonado a família. Ofereceu nova vida aos três irmãos. Casou com Milene, 32 anos, e ganhou Davis, 12 anos, e Daniel, oito. Ao mesmo tempo, investiu num projeto social na periferia. Ele saiu de lá, venceu, voltou e quer que outros sigam o roteiro.
Como a família reagiu quando soube que você tinha decidido deixar o futebol?
A família nunca questionou nada na minha carreira nestes 19 anos. Preparava as malas quando eu dizia "vamos sair." Todo mundo aceitava numa boa, sem queixas, sem problemas. Meus filhos deixavam as aulas e os colegas. Minha mulher largava os cursos. Ela sempre estudou muito. Sei que me falta estudo, mas ela me equilibrou neste sentido. Ela nunca reclamou por largar um projeto pela metade. Nunca. Vamos para Portugal? "Vamos". Rio? "Boa, legal". Alemanha? "Claro. Não tem problema". Voltar para Porto Alegre? "Claro".
E como os filhos agiam nestes momentos?
Quando resolvi deixar o Cruzeiro, em Belo Horizonte, reuni os dois guris e disse: "Ó, o pai vai parar, não vai mais jogar. Acabou. Ficarei mais perto de vocês agora". As crianças começaram a chorar, emocionados. Foi aquela choradeira geral, eu, todos. Eles gostavam muito de Belo Horizonte, mas querem mais ainda Porto Alegre.
Quem sentiu que era a hora de guardar as chuteiras. Você ou eles?
Eu senti. Eles também começaram a não gostar deste vai e vem, da vida de jogador de futebol, viagens, concentrações, ausências prolongadas. Eu disse: "Para aí". Eles se doaram a vida inteira, nunca falaram nada. Eu poderia ter ficado mais um pouco nos clubes nos quais defendi. Sempre fiz bons contratos. Podia segurar um pouco. Sair depois. A família nunca pediu para eu ficar, sempre acompanhou as minhas decisões.
Assista ao trecho em que Tinga faz o anúncio:
A família sente quando o jogador começa a querer trocar de endereço?
Minha mulher sentia quando chegava a hora de sair. Quando surgia algum problema, o treinador começava a me colocar na reserva e eu ficava fora dos jogos, ela já sabia, entendia. Começava a arrumar as malas (risos).
Desta vez, a decisão é sem volta?
Depois que eu sofri uma lesão (fratura na tíbia e na fíbula da perna direita, em agosto do ano passado), tive a certeza. Fiquei quatro meses me tratando. Ao mesmo tempo, vi muito futebol pela TV, ou seja, de fora para dentro. Foi quando eu comecei a fazer um balanço da carreira. Decidi logo e já fui me acostumando. Sabe que eu agradeço muito a Deus pela lesão?
Sério?
Sim, pelo momento que eu tive o problema, nesta etapa da minha vida e da carreira. Pude refletir, já com a carreira consolidada.
Explica melhor.
Eu sou daqueles que entende que se a pessoa tem muitos problemas, tem também muitas soluções.
Você pediu conselhos antes da decisão?
Não. Foi tudo comigo mesmo. Eu sempre tive o sonho de terminar a carreira da melhor forma possível. De sair bem do clube, de encerrar com conquistas, de estar bem comigo mesmo. Sempre quis jogar o máximo de tempo, sem esquecer de cuidar da minha imagem e do corpo. É quase impossível um jogador chegar aos 37 anos defendendo um time grande. Só joga quem passar um tempo fora do Brasil.
Por quê?
Esta enorme sequência de jogos no Brasil arrebenta o atleta. Faz com que o jogador que começa com 18 anos fique todo arrebentado aos 28 anos. No país, quanto mais tempo o jogador fica no clube, mais querem que ele deixe o clube. Na Europa, é diferente, quanto mais tempo há mais respeito e consideração.
Na Europa, a vitória é igual. A cobrança é a mesma.
Aprendi mais nas derrotas do que nas vitórias. O que ensina mesmo é o choro. Não é a alegria ou o sorriso. Os títulos escondem muitas coisas erradas. No barulho das festas, não se nota muitas coisa. Eu aprendi muito com o choro.
Antes do sucesso, sua vida foi difícil?
Muito difícil, aliás, como é a vida da maioria dos brasileiros. Fui criado só pela minha mãe. Meu pai nos largou quando eu tinha sete anos, o que me deu um aprendizado de vida. Minha mãe trabalhava sete dias por semana, sem folga, zero de lazer. Lembro-me de chegar em casa no final da tarde, suado, depois de uma pelada, e ver a minha mãe saindo para trabalhar em seguida, na sexta, no sábado ou no domingo. Ela trabalhava à noite, fazia dupla jornada. Varava a madrugada nas faxinas no Teresópolis Tênis Clube. No outro dia, chegava em casa às 6h, dormia até às 10h e depois ia trabalhar de novo. Quando eu cresci, até fui junto algumas vezes às festas. Ela conseguia uns convites (risos), mas não parava de trabalhar.
Foto: Roberto Stuckert Filho/PR, divulgação. 13/03/2014
Ex-árbitro Márcio Chagas, presidente Dilma Rousseff e Tinga
Foto: FULANODETAL
Esta é uma das suas lembranças mais fortes?
Eu sempre me recordo destes dias de infância e adolescência, uma lembrança quase diária. Tudo está muito vivo na minha cabeça. Essa foi a minha base familiar, que foi muito boa, mesmo com meu pai separado de nós. A mãe trabalhava o dia inteiro. Ainda estão nos meus ouvidos as frases dela nas manhãs dos finais de semana: "Não faz barulho, deixa a mãe dormir um pouco, tenho que trabalhar mais tarde".
Foi difícil?
Muito, mas às vezes havia umas recompensas, pequenas, mas definitivas. Ela chegava em casa com uma sacola, com comidas diferentes, frutas, potes de iogurte. A gente não tinha iogurte e frutas frescas todos os dias. Era um luxo distante. Isto ficou na minha cabeça na infância e na adolescência. Pensava: "Trabalhar é legal. A mãe sai para trabalhar e traz coisas boas. Quando crescer, vou trabalhar", pensava.
E o seu pai?
Ele vivia bem, trabalhava na antiga CRT, ganhava legal, mas nós passávamos dificuldades. Era uma pessoa muito distante de nós.
Como ele está hoje?
Quando eu jogava no Grêmio, em 2001, chegou um taxista no Olímpico. "Corre, meu. Teu pai tá mal. Ele dirigiu na contramão na Avenida Ipiranga". Eu fui atrás dele então. Decidi, era meu pai, cara. Descobri que ele tinha surtado. Ele estava com um problema mental. A outra família o havia largado. Chamei os médicos e o internamos numa clínica. Ele passou um tempo em repouso e melhorou um pouco.
E depois?
Eu o levei para a minha casa. Ele tomava muito remédio e às vezes surtava. Minha mulher estava grávida de seis meses e começou a ficar preocupada. Mas nunca falou: "Tira ele de casa". Entendia o problema, foi companheira, dava força. Mas eu, na concentração, nas viagens, antes dos jogos, ficava preocupado. Perdia o foco.
Foto: Luiz Armando Vaz/Agência RBS. 04/08/1997
No Grêmio, em 1997, após o gol no Sport que o projetou para o Brasil
O que você fez?
Fui conversar com a minha mãe, que morava na primeira casa, ao lado do meu irmão e da minha irmã, que eu comprei com o dinheiro que ganhei no Japão. Não aguentava mais. Rodei Porto Alegre inteira em busca de um lugar para o meu pai ficar. Pai, mas um homem com quem eu não tinha intimidade alguma. Meu dinheiro também estava acabando, os gastos com ele foram grandes. Estourou meu orçamento.
E o que a sua mãe falou?
Ela foi simples e direta. Me emociono até hoje. Disse: "Olha, filho, deixe ele aqui que eu vou cuidar. Vai, vai jogar, trabalhar, deixa comigo". Aquilo foi uma surpresa. Eu bati na porta da minha mãe numa hora de desespero. Não conseguia mais pensar em nada. Imaginava um não da minha mãe. Pensa bem. Uma mulher ser largada 20 anos atrás pelo marido e, de uma hora para outra, receber o homem de volta.
É uma decisão delicada.
Me coloquei no lugar dela. Imagine se acontecesse o mesmo comigo? Será que eu aceitaria a mulher de volta. A minha mãe me surpreendeu demais, cara. Ficou dois anos cuidando dele. O gesto da minha mãe foi um dos maiores exemplos que eu tive nas minhas quase quatro décadas de vida. Hoje eu pago um lugar para ele morar. Sempre tem alguém cuidando dele.
Foi um grande gesto mesmo. Você recebeu ajuda quando era mais jovem?
Eu fui muito ajudado. Meus amigos me davam passagem para treinar, uns trocados. Muitos amigos, gente da minha geração, estão mortos. Eles nunca deixavam chegar nada de ruim até mim. Outros caras vinham me oferecer droga. Os amigos chegavam perto e falavam: "Esse aí não, esse é especial". Fui muito protegido na Restinga na minha adolescência. Eu tenho uma consideração muito grande com o pessoal da Tinga, sempre volto, procuro estar lá, ajudar. Os caras nunca, nunca mesmo, deixaram que eu provasse algo ilícito. Eu fui aprendendo.
Quando você descobriu que poderia vencer na vida?
É engraçado. Eu sempre fui criado muito sozinho. Eu cuidava da minha vida. Não tinha regra. Fui disciplinado pelo futebol. Eu acredito muito no futebol como ferramenta para educar os jovens. O futebol me levou a ter regras no dia a dia. Me ofereceu limites.
Quando sua mãe descobriu que você poderia ter uma carreira vitoriosa?
Lembro que, quando disputei campeonatos das categorias de base pelo Grêmio, eu falava para a minha mãe: "Bah, mãe, eu tenho que jogar, viajar. Vou ficar uns dias fora". Ela sorria. Quando fui morar na concentração do Estádio Olímpico, foi um alívio em casa. Minha mãe tinha uma boca a menos para alimentar. Eram três bocas, ficaram duas.
Você era bem tratado na base gremista?
Eu fui muito bem cuidado no Grêmio. Aprendi muito. Mais adiante, quando fizeram a primeira matéria comigo, no dia que eu ia estrear no time principal, minha mãe ainda achava que jogar futebol era disputar uma pelada na esquina. No dia em que saiu a matéria no jornal, quando convidei a mãe para ir ao jogo, ela estranhou. "Mas é aquele jogo que aparece na TV, Paulo César"? (risos).
Foto: Fernando Gomes/Agência RBS. 08/06/2001
Eduardo Costa, Cláudio Pitbull, Anderson Polga e Tinga posam para foto no Olímpico
Com a camisa gremista veio à fama?
Não, na época, eu só queria jogar. Não pensava na carreira, em contratos milionários, na fama, nos carrões ou jogar no Barcelona ou no Real Madrid. Meu único objetivo na época era dar uma casa para a minha mãe. Não fazia grandes planos. Era o meu sonho desde pequeno, desde as peladas. Hoje, com 15 anos, o piá tem toda a carreira já desenhada na cabeça.
Como foi aventura no Japão em 1999?
Me assustei no começo. Era muito novo, só 20 anos. A proposta era de um contrato de seis meses. Se no Grêmio eu recebia R$ 3 mil, no Kawasaki Frontale ganharia US 30 mil. Não tinha como não ir. Na assinatura, foi tudo festa, só pensava no salário. Mas quando você viaja, chega ao clube e faz exame médico, nasce o medo. Quando cheguei, nos primeiros dois dias, naquele país tão estranho, eu só chorava. Chorava de pura solidão.
Problemas com o idioma?
Não sabia falar japonês ou inglês e não sei nem falar português direito. Nunca imaginei tentar falar outra língua. Era diferente de hoje, quando a internet conecta o mundo inteiro. Na época, eu tinha que ligar para Embratel que, por sua vez, contatava o Brasil. Eu era sozinho mesmo. Minha namorada, atual mulher, foi três meses depois e ficou 90 dias. Como ela só tinha 15 anos, não podia ficar muito tempo porque não conseguia um visto mais longo.
Como eram os contatos com o Brasil?
Não tinha nem TV. Não entendia nada dos programas japoneses. Não via nada sobre o Brasil. Quando tentava acessar a internet, tudo era muito lento. Podia tomar um banho, fazer um feijão, que eu levei, claro, que a notícia não aparecia na tela do computador. Eu sofria. Mas depois comecei a entender como ligar direto para o Brasil.
Foto: Valdir Friolin/Agência RBS. 16/08/2006
Em 2006, pelo Inter, em sua primeira conquista da Libertadores
Você ligava muito para Porto Alegre? Queria matar a saudade?
Muito mesmo, sabe, a solidão bate forte lá fora. Eu ligava às 8h, com voz de sono, e pegava todos os amigos empolgados. Eram 20h no Brasil. Ou ligava à noite no Japão, cedo no Brasil, e ninguém queria conversar, todos estavam a caminho do trabalho.
O que os amigos diziam?
O meu empresário avisou aos meus amigos. "Quando o Tinga ligar do Exterior, especialmente entre janeiro, fevereiro e março, já que ele gosta muito de praia, digam que o tempo está ruim, que chove sem parar e que faz frio". Eu estranhava, pô, ninguém na praia, mas tudo bem, eram os amigos que falavam.
Era mentira?
Quando eu voltei, eles me contaram a verdade. "Tinga, não leva a mal, pediram para falar que o tempo estava ruim. Era para te deixar tranquilo". Este é só um exemplo dos pequenos detalhes que ajudam o cara a se concentrar no trabalho no Exterior e não querer voltar o mais rápido possível.
Você teve uma má experiência no Rio de Janeiro no ano 2000?
Sofri um pouco no Rio, logo depois de voltar da Ásia. Jogava no Botafogo e não recebia. Com o dinheiro do Japão comprei dois imóveis em Porto Alegre. Torrei o resto das economias. Estava na idade do pavão, um pouco exibido. Exagerei. Achava que tudo ia se arrumar, mas quando vi estava liso. Aí, caiu a ficha. Minha mulher me chamou. "Como é que é, você nunca tem dinheiro?" Eu não recebia do clube. Joguei oito meses, recebi quatro. Mas isto me levou a ver a realidade do futebol. Quando você tiver, guarda, porque ninguém sabe o que será o dia de amanhã.
O que você aprendeu na Alemanha entre 2006 e 2010?
Eu aprendi tudo, tudo. Não sou nada hoje, mas o nada que eu sou devo a Alemanha. Amadureci muito. Uni o que havia aprendido com a minha mãe e a experiência com o futebol. Pensei, refleti e concluí que eu estava certo. Que o negócio era mesmo trabalhar duro, cumprir horário, respeitar todo o mundo. A Alemanha me fez bem como ser humano. Voltei ao Brasil com 32 anos. Joguei mais cinco. Aprendi, me tornei uma pessoa melhor e um profissional mais completo. Se a Alemanha não tivesse aparecido na minha vida, eu teria parado antes.
A passagem do Grêmio para o Inter não mexeu contigo?
Quando eu fui para o Inter pela primeira vez, em 2005, lembro que encontrei dois jogadores que haviam passado pelos dois clubes. Eles falaram: "Tu tá louco, Tinga. Lá, você perdeu, a culpa é tua". Eu tinha chegado todo empolgado. Aí, me deu um choque. Mas, muitos anos antes, eu havia feito três testes no Inter e um no Grêmio.
Você é colorado?
Sim, mas eu sempre via o Mauro Galvão sendo abraçado por torcedores dos dois clubes, ele que foi campeão com as duas camisas. Eu via os fãs pedindo fotos e autógrafos. Pensava: "Deve ser muito legal". Quando eu fui convidado para jogar no Inter, vi como uma oportunidade. Mas não imaginava que seria tão grande, dois títulos de Copa Libertadores. Imaginava um Gauchão. Com todo o respeito, até 2005 esta era a realidade. Mas eu tive grandes conquistas com as duas camisas. Me orgulho muito.
Neste tempo todo que você está no futebol, quase duas décadas, você viu alguém derrubar treinador, seja na dupla Gre-Nal ou em qualquer outra time?
Eu não vi derrubar. Posso dizer, cara, que jogador, às vezes, fica muito chateado com a maneira que o trabalho está sendo conduzido. E então fazem as coisas de qualquer maneira, o que, claro, é errado. Sabe, jogar, mas não estar nem aí com nada. Mas eu sempre fui contra este tipo de posicionamento. Derrubar treinador eu não acredito. O que pode acontecer é desleixo dos jogadores. Agora, combinar e derrubar, eu não creio.
Com a camisa do Cruzeiro você sofreu com o racismo em jogo no Peru, no ano passado. Conta como foi?
Na Peru foi a última vez. Mas já sofri em Caxias, na década passada, quando jogava pelo Inter. Outras vezes também.
O que aconteceu?
Eu pegava na bola e a torcida do Real Garcilaso imitava macaco.
E você?
Quando o jogo terminou, segundos depois, eu saí e estava toda a imprensa me esperando na beira do gramado. Eu pensei: "Bah, os caras vão vir rachando. Perdemos o primeiro jogo da Libertadores, 2 a 1". Me preparei mentalmente para responder a perguntas de praxe. Eu não estava preparado para as perguntas sobre racismo. Aquilo, ao menos na minha cabeça, tinha sido mais um ato. Não que eu ache certo. Mas eu não me abato. Eu acredito em mim como pessoa.
O que você respondeu?
Eu não esperava a pergunta. Me pegaram de surpresa, não sabia direito o que falar, não tinha me preparado. Foi tudo muito rápido. Eu tomei um choque. Aí, eu peguei o gancho da pergunta de um repórter e respondi. Falei "Eu trocaria todas as minhas conquistas e títulos pela igualdade social e racial". Simplesmente fiz isso.
E no vestiário como foi?
Ah, normal, mas quando liguei para a minha casa me falaram da repercussão de tudo. Eu nunca quis fazer nada, só que tudo tomou uma proporção muito grande. No dia seguinte, o pessoal do Cruzeiro me disse que toda a imprensa estava no hotel e queria falar comigo. Eu não queria falar, não tinha nada para falar. Depois, tudo aumentou mais ainda. Mas pensei, como não vou falar, vou ser ingrato com todas as pessoas que um dia me ajudaram ou se importaram comigo.
O que você achou da multa ao clube peruano?
Se fosse R$ 1 milhão ou R$ 1, não seria correto. Não é produtivo. A multa ideal seria envolver o clube numa causa. Mas eu nunca me envolvi, querer fazer disso (do racismo) uma bandeira. Eu aprendi que o preconceito racial existe e é muito grande, mas entendo que o preconceito social grita mais alto. Quando você tem condição, algumas posses, dinheiro, até te aceitam. Quando sou chamado, eu luto por isso. Falo.
A sua família foi impactada?
O meu filho mais velho sentiu muito. Eu sempre joguei em clubes grandes, mas sempre fui um cara muito reservado. Se eu quisesse, com todas as oportunidades que tive, poderia ter aparecido muito mais em casos assim. Mas nunca quis.
Aparecer como?
Fui convidado várias vezes para aparecer em videoclipes musicais que tocavam no tema racismo. Mas o que tem a ver a música com o que eu passei?
O que os seus filhos disseram?
O que assustou meu filho foi o excesso de mídia. Sabia que todo mundo ia olhar para ele diferente na escola nos dias seguintes. Ele chorou bastante, notou a proporção do fato e me perguntou algumas coisas. Quando voltei do Peru, fui direto para casa, reuni minha mulher e os filhos na sala. Cheguei perto deles e disse que tudo poderia acontecer de novo, desta vez, com eles. Mas, pela condição social deles, poderiam fazer a mesma coisa com alguém. Pedi que tomassem cuidado. Aproveitei e fiz um debate com os meninos, que ficaram muito assustados. Mas hoje eles estão legais.
Você estuda?
Faço a Universidade do Futebol, com o professor João Paulo Medina. No dia 28 do mês que vem, vou para a Alemanha. Na minha agenda tem visitas a Berlim e Dortmund. Joguei no Borussia, tenho muitos amigos. Vou passar um tempo na Europa. Depois, ficarei algumas semanas nos Estados Unidos. Vou em busca de informação e formação. Mas tenho outras coisas, negócios como a agência de viagens da minha mulher, a Sieben Tour, e o meu hotel, em Gramado.
Empresários o procuram, fazem proposta?
Empresas me procuram para trabalhar, querem usar meu nome e não pedem só palestras. Não é para investir, mas para usar a minha imagem. Mesmo sem ter estudado, tenho só o primário, conheço os processos. Fiz vários cursos, inglês, alemão, oratória, porém nunca terminei. Gastei um monte de dinheiro, só que aproveitei apenas parte deste aprendizado. Nunca chegava até as provas finais, só que sempre ficava algo. Hoje, uso o que aprendi de gestão nos meus negócios.
O que você não quer no futebol?
Ser técnico e empresário.
O que você quer?
Acho que seria legal fazer um trabalho de acompanhamento em um clube, observar jogadores no país e no Exterior. Ter certeza na hora da contratação. Errar menos, buscar o jogador certo. O futebol precisa de gente assim, que conhece o mercado, que sabe tratar com os jogadores e que pode avalizar as contratações com mais certeza. Nesta crise, não dá para errar mais.
Um cara que é chamado de ministro pelos jogadores, como acontecia no Cruzeiro, poderia se transformar num grande empresário de futebol.
Ajudei muita gente até porque fui muito ajudado na minha vida. Ajudei, mas nunca pedi um centavo. Já dei dicas para treinadores, jogadores e dirigentes. Vou ajudar o Bom Senso (o movimento de jogadores que quer transformar as estruturas do futebol brasileiro). O futebol vai mudar. Está caro dentro e fora de campo. Não pode continuar assim.
Qual a cidade que você escolheu para morar?
Ah, Porto Alegre. É a minha cidade. Quero ver meus filhos crescendo nela. Um dos guris já treina na base do Inter. Desejo ver o meu projeto social, o Aspirantes de Cristo, cada vez melhor e mais solidificado, com futebol, música e dança. Nós não cuidamos só das crianças, mas de toda família. Este projeto é o meu bebê. Vi nascer e agora quero ver crescer.
Como você sai do futebol?
Ileso e pela porta da frente.
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