Joel está no Cruzeiro atualmente | Crédito: Pedro Silveira
O sucesso de Joel Tagueu é incontestável, ao contrário dos meios que seus empresários encontraram para tirá-lo da terra natal até se apresentar ao Cruzeiro, no início do ano. “Em Camarões, eu não teria a chance de viver só de futebol. Eu vim tentar um futuro melhor”, diz o atacante de 21 anos. A justa empreitada de um menino humilde em busca do sonho no Brasil rende manchetes e comoção por seu esforço, mas, por outro lado, mascara um crescente fluxo migratório movido pelo comércio de crianças e adolescentes, que deixa rastros de violações às regras do jogo e aos direitos humanos, abandono e maus-tratos.
Joel é um ponto fora da curva. Deixou cedo a família e seu país, superou desafos e chegou ao atual bicampeão brasileiro, o auge da curta carreira como profissional. É assim que sua história precisa ser vista. Como uma exceção. A longa viagem em busca do estrelato não vale a pena para todos.
Revelado pelo Londrina, Joel ficou longe da família e de torneios oficiais | Crédito: Futura Press
BURLA AO REGULAMENTO
Natural de Nkongsamba e criado em um bairro carente de Douala, maior cidade de Camarões, Joel não demorou a iniciar sua jornada pelo futebol. Aos 14 anos, já havia passado por times da Bulgária, Bélgica, África do Sul e Egito. Não durou muito tempo em nenhum deles por causa das restrições migratórias nesses países, sobretudo para uma criança desacompanhada dos pais. A oportunidade de ouro veio na sequência. Artilheiro de um campeonato infantil organizado pela Federação local, ele chamou a atenção de Wanda Tatchou Augustin Cinoncelli, 44, um agente camaronês radicado no Brasil. Conhecido apenas como Augustin, ele resolveu apostar no pequeno goleador.
Mesmo sem ter garantia de conseguir um time para jogar, Joel despediu-se de Douala e chegou a São Paulo no dia 17 de setembro de 2009, com 15 anos. Augustin então o levou para o Paraná e, em seguida, para o Iraty, clube mantido pela SM Sports, dos empresários Sergio Malucelli e Juan Figer. Em 2011, a empresa direcionou seus investimentos para o Londrina, onde o atacante já chamava atenção, mas sem integrar o time em campeonatos e jogos oficiais. De acordo com o regulamento da Fifa, a transferência de jogadores menores de 18 anos para outros países só é permitida em três ocasiões: quando os pais se mudam por motivos não relacionados ao futebol; maiores de 16 anos entre nações da União Europeia; ou se a família do atleta residir a até 50 quilômetros do clube.
Joel não preenchia nenhum dos requisitos. Até completar 18 anos, viveu uma rotina de informalidade, apenas treinando e disputando amistosos. “Foi angustiante”, diz. Sem poder registrá-lo na Federação, o Londrina maquiou o vínculo de trabalho do atacante. Ele recebia alojamento e ajuda de custo.
No entanto, em vez de jogador da base, tinha contrato como funcionário-aprendiz do clube, o que garantia a renovação de seu visto temporário no Brasil. A equipe paranaense decidiu escalá-lo em um jogo do Estadual sub-17, em 2010. “O time já estava classificado para a próxima fase. Quis testar o Joel mesmo sem tê-lo inscrito no campeonato”, conta Sergio Malucelli, presidente do clube. Ciente do risco da manobra, o Londrina perdeu 6 pontos pela escalação irregular — o atacante foi expulso com menos de 5 minutos em campo.
De acordo com o advogado Eduardo Carlezzo, especialista em direito esportivo, a artimanha fere as determinações da Fifa.
“Trata-se de uma burla às normas de proteção de crianças e adolescentes no futebol.” Depois de subir ao profissional, Joel foi artilheiro do Paranaense do ano passado pelo Londrina e, no segundo semestre, se transferiu para o Coritiba. Dividiu concentração com o angolano Geraldo, que veio para o Brasil aos 16 anos e passou por Rio Claro e Andraus-PR antes de ser contratado pelo Coxa, aos 17, na mesma situação de Joel.
Também camaronês, o lateral-esquerdo Arnold, do Ceará, atuou por quatro anos na base do Cruzeiro com contrato amador. Apesar da restrição da Fifa, disputou o Campeonato Mineiro e a Copa do Brasil sub-17, em 2011. Antes, já havia jogado o Paulista da categoria pelo Olé Brasil ao lado do conterrâneo Vincent Bikana
— que ainda participou de uma Copa São Paulo de Juniores. Além dos clubes, federações e CBF correm risco de punição por permitir a inscrição de garotos estrangeiros, com base na inédita decisão de 2014 contra o Barcelona [veja abaixo]. A diretoria do Cruzeiro admite que Arnold jogou competições ofciais, mas afirma que não conta mais com nenhum estrangeiro na base. “O fato de terem cometido infração no passado não deixa clubes nem a CBF imunes a investigações e possíveis punições da Fifa”, diz Carlezzo.
A rota do tráfico | Crédito: Revista Placar
Quando Joel fez 18 anos, a diretoria do Londrina agilizou seu visto permanente de trabalho no Paraguai. Caso contrário, ele teria de voltar a Camarões para regularizar sua situação no país. Segundo Sergio Malucelli, o agente Augustin, que trabalha para a SM Sports e já intermediou a vinda de outros jogadores, está prestes a encaminhar mais três camaroneses para o Londrina. O mecanismo de fiscalização da Fifa é pouco abrangente. Depende de denúncia, na maioria dos casos, e não barra a incursão de estrangeiros em clubes fora da Europa ou incubadoras que funcionam como ponte para os grandes.
Programas de intercâmbio de futebol ainda permitem que jogadores entrem no Brasil com visto de estudante. Muitas vezes, servem para lapidar atletas para a base dos clubes.
Países da África e da Ásia são as fontes primárias de captação. Nos próximos três anos, o Cruzeiro vai abrigar 26 jogadores com menos de 16 anos bancados pelo governo do Cazaquistão. O Botafogo-SP também recebe intercambistas cazaques, além da China e do Benin, por meio de um acordo com o governo do país africano, ratificado pela Agência Brasileira de Cooperação. Alguns deles já disputaram o Paulista em categorias infantil e juvenil.
TRÁFICO NORMALIZADO
Arnold e Vincent desembarcaram no país para um intercâmbio no Olé Brasil, incorporado ao Botafogo-SP em 2012. Eles foram descobertos pelo empresário Fabrício Zanello, que excursionava ao redor do continente africano atrás de novos talentos em 2010. “Captei os atletas em campos de terra de Camarões. Só comiam uma vez por dia. Dei uma chance a eles, mas não tive retorno”, conta. Vincent acabou indo parar na Malásia, enquanto Arnold foi dispensado do Cruzeiro e se desentendeu com o agente. Aos 18 anos, teve de lidar com a saudade dos pais e o desemprego. “Não tinha dinheiro para voltar pra casa depois que saí do Cruzeiro. Fiquei sozinho aqui”, diz. No ano passado, cavou um espaço no Ceará e firmou seu primeiro contrato profissional.
Arnold disputou torneios pelo Cruzeiro | Crédito: Site Oficial do Cruzeiro
Sob o pretexto do intercâmbio, seis jogadores entre 14 e 16 anos da Guiné demoraram a descobrir que haviam sido enganados por um suposto empresário da capital, Conacri. Cada família pagou cerca de 10.000 reais pela viagem. Com visto de estudante, eles deixaram o país em 2014 com a promessa de jogar no São Paulo. Acabaram treinando na várzea e dormindo no chão de um alojamento precário. O agente sumiu e os garotos foram despejados. Acolhidos pelo ex-jogador Júnior Lima, vivem hoje em Santo André com os poucos recursos enviados mensalmente pelos familiares. Apenas um deles conseguiu voltar para casa.
Os outros seguem nutrindo a ilusão de vingar no futebol brasileiro. Saíram de Conacri amedrontados pelo surto de ebola, mas já admitem a possibilidade de retornar devido à falta de dinheiro. Eles não falam português e estão longe da escola. A Polícia Civil investigou o caso, mas o processo foi arquivado.
Meninos de Guiné levaram golpe de agente | Crédito: Alexandre Battibugli
Por se tratar de um continente pobre, com pouco investimento no futebol, a África é cada vez mais vulnerável a transferências internacionais por baixo dos panos e fornece mão de obra barata para os clubes receptores. Em 2008, equipes brasileiras chegaram a fechar meninos da Guiné que emproaram em dois barcos de refugiados no litoral do Rio Grande do Norte. Entre eles, Maza Sylla, que aos 17 anos jogou com Neymar na base do Santos.
Geralmente, porém, eles são oferecidos aos clubes por intermédio de agentes. Foi assim com Pascal Alima, outro camaronês que jogou no Cruzeiro com apenas 14 anos. Depois de três meses no time mineiro, um empresário o levou para a Argentina. Lá, foi forçado a assinar um documento declarando que seus pais estavam mortos, a fim de transferir sua guarda ao agente. “Isso eu não faço”, disse, na época. A recusa custou-lhe a carreira na América do Sul.
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Pelé exigem que clubes garantam educação, convívio familiar e contrato de trabalho a adolescentes mantidos em suas categorias de base. No caso de estrangeiros, raramente as condições são cumpridas. “O convívio com a família é um direito básico da criança, fundamental para sua formação e desenvolvimento”, diz Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, procuradora do Ministério Público do Trabalho. À margem dos garotos com contrato de formação no Londrina, Joel ficou mais de dois anos afastado da família, que continua vivendo em Camarões. Já Arnold não vê os pais há mais de cinco anos.
O Grêmio também tem um jogador camaronês. M. K., 15, passou pela base do São Paulo e defende o sub-16 do tricolor gaúcho, mas é impedido de disputar partidas oficiais, embora seu pai, Ermand Poka Pogne, tenha cidadania brasileira e more em São Paulo. Além do filho, Pogne, que se apresenta com o pseudônimo Love Kescelot e faz cursos de treinador na CBF, já recrutou outros dois jovens camaroneses para times da capital paulista.
Jogador sub-15 do Grêmio, filho de camaronês | Crédito: Arquivo Pessoal
Em 2008, ele abriu uma escolinha clandestina do Corinthians em Nkongsamba, mesma cidade de Joel, prometendo pinçar as revelações no Brasil. Procurado, o Corinthians diz que não mantém nenhuma filial em países africanos e já notificou o agente sobre a farsa. Pogne não foi encontrado pela reportagem.
Pai de joia gremista fundou falsa escolinha do Corinthians em Camarões | Crédito: Divulgação
“O futebol se estabelece como uma nova modalidade do tráfico de pessoas”, afirma Cristiane Lopes. “Um caso de sucesso, que é raro, não pode justificar vidas e infâncias perdidas pelo caminho.” O cruzeirense Joel, por sua vez, acredita que as privações de sua trajetória compensaram. Nas redes sociais, ele compartilha os feitos da carreira com compatriotas que vira e mexe imploram por conselhos para alcançar um lugar ao sol em gramados distantes. “Sou um exemplo para o povo da minha terra.
Nunca desisti do meu sonho”, diz. Joel simboliza um prodígio da consagração, mas Camarões e o restante da África seguem à mercê das negociatas por crianças e adolescentes de chuteiras.
O CASO BARÇA
Clube espanhol foi denunciado e punido por abrigar garotos estrangeiros
Em 2013, uma denúncia anônima chegou à sede da Fifa, na Suíça. O Barcelona teria 33 jogadores de outros países, menores de 18 anos, instalados em La Masia, o centro de formação das categorias de base. Entre eles, 15 africanos levados pelo atacante camaronês Samuel Eto’o por meio de sua fundação. Menos de um ano depois, o clube catalão foi sentenciado pela entidade máxima do futebol: multa de 1,15 milhão de reais e um ano sem poder fazer contratações.
A investigação concluiu que o Barça violou o regulamento de transferências internacionais de jovens atletas em pelo menos nove casos entre 2009 e 2013. Um jogador guineano deixou o clube e os outros esperam completar 18 anos para poder atuar. A Fifa também aplicou sanção à Federação Espanhola, com multa de 1,3 milhão de reais, por ter permitido a inscrição dos estrangeiros em competições.
Embora a resolução de proteção a crianças e adolescentes conste no regulamento geral desde 2001, o Barcelona nunca havia tido problemas para regularizar seus talentos extracomunitários.
Apenas em 2009 a Fifa criou uma comissão especial para monitorar as transferências e o primeiro registro de atletas.
Maior artilheiro da história blaugrana, Lionel Messi deixou a Argentina em 2000 e desembarcou no clube com apenas 13 anos.
Fosse nos dias de hoje, a contratação do craque seria considerada irregular.
O camaronês Jean Marie Dongou foi negocido com o Barça aos 13 anos | Crédito: Getty Images
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Joel é um ponto fora da curva. Deixou cedo a família e seu país, superou desafos e chegou ao atual bicampeão brasileiro, o auge da curta carreira como profissional. É assim que sua história precisa ser vista. Como uma exceção. A longa viagem em busca do estrelato não vale a pena para todos.
Revelado pelo Londrina, Joel ficou longe da família e de torneios oficiais | Crédito: Futura Press
BURLA AO REGULAMENTO
Natural de Nkongsamba e criado em um bairro carente de Douala, maior cidade de Camarões, Joel não demorou a iniciar sua jornada pelo futebol. Aos 14 anos, já havia passado por times da Bulgária, Bélgica, África do Sul e Egito. Não durou muito tempo em nenhum deles por causa das restrições migratórias nesses países, sobretudo para uma criança desacompanhada dos pais. A oportunidade de ouro veio na sequência. Artilheiro de um campeonato infantil organizado pela Federação local, ele chamou a atenção de Wanda Tatchou Augustin Cinoncelli, 44, um agente camaronês radicado no Brasil. Conhecido apenas como Augustin, ele resolveu apostar no pequeno goleador.
Mesmo sem ter garantia de conseguir um time para jogar, Joel despediu-se de Douala e chegou a São Paulo no dia 17 de setembro de 2009, com 15 anos. Augustin então o levou para o Paraná e, em seguida, para o Iraty, clube mantido pela SM Sports, dos empresários Sergio Malucelli e Juan Figer. Em 2011, a empresa direcionou seus investimentos para o Londrina, onde o atacante já chamava atenção, mas sem integrar o time em campeonatos e jogos oficiais. De acordo com o regulamento da Fifa, a transferência de jogadores menores de 18 anos para outros países só é permitida em três ocasiões: quando os pais se mudam por motivos não relacionados ao futebol; maiores de 16 anos entre nações da União Europeia; ou se a família do atleta residir a até 50 quilômetros do clube.
Joel não preenchia nenhum dos requisitos. Até completar 18 anos, viveu uma rotina de informalidade, apenas treinando e disputando amistosos. “Foi angustiante”, diz. Sem poder registrá-lo na Federação, o Londrina maquiou o vínculo de trabalho do atacante. Ele recebia alojamento e ajuda de custo.
No entanto, em vez de jogador da base, tinha contrato como funcionário-aprendiz do clube, o que garantia a renovação de seu visto temporário no Brasil. A equipe paranaense decidiu escalá-lo em um jogo do Estadual sub-17, em 2010. “O time já estava classificado para a próxima fase. Quis testar o Joel mesmo sem tê-lo inscrito no campeonato”, conta Sergio Malucelli, presidente do clube. Ciente do risco da manobra, o Londrina perdeu 6 pontos pela escalação irregular — o atacante foi expulso com menos de 5 minutos em campo.
De acordo com o advogado Eduardo Carlezzo, especialista em direito esportivo, a artimanha fere as determinações da Fifa.
“Trata-se de uma burla às normas de proteção de crianças e adolescentes no futebol.” Depois de subir ao profissional, Joel foi artilheiro do Paranaense do ano passado pelo Londrina e, no segundo semestre, se transferiu para o Coritiba. Dividiu concentração com o angolano Geraldo, que veio para o Brasil aos 16 anos e passou por Rio Claro e Andraus-PR antes de ser contratado pelo Coxa, aos 17, na mesma situação de Joel.
Também camaronês, o lateral-esquerdo Arnold, do Ceará, atuou por quatro anos na base do Cruzeiro com contrato amador. Apesar da restrição da Fifa, disputou o Campeonato Mineiro e a Copa do Brasil sub-17, em 2011. Antes, já havia jogado o Paulista da categoria pelo Olé Brasil ao lado do conterrâneo Vincent Bikana
— que ainda participou de uma Copa São Paulo de Juniores. Além dos clubes, federações e CBF correm risco de punição por permitir a inscrição de garotos estrangeiros, com base na inédita decisão de 2014 contra o Barcelona [veja abaixo]. A diretoria do Cruzeiro admite que Arnold jogou competições ofciais, mas afirma que não conta mais com nenhum estrangeiro na base. “O fato de terem cometido infração no passado não deixa clubes nem a CBF imunes a investigações e possíveis punições da Fifa”, diz Carlezzo.
A rota do tráfico | Crédito: Revista Placar
Quando Joel fez 18 anos, a diretoria do Londrina agilizou seu visto permanente de trabalho no Paraguai. Caso contrário, ele teria de voltar a Camarões para regularizar sua situação no país. Segundo Sergio Malucelli, o agente Augustin, que trabalha para a SM Sports e já intermediou a vinda de outros jogadores, está prestes a encaminhar mais três camaroneses para o Londrina. O mecanismo de fiscalização da Fifa é pouco abrangente. Depende de denúncia, na maioria dos casos, e não barra a incursão de estrangeiros em clubes fora da Europa ou incubadoras que funcionam como ponte para os grandes.
Programas de intercâmbio de futebol ainda permitem que jogadores entrem no Brasil com visto de estudante. Muitas vezes, servem para lapidar atletas para a base dos clubes.
Países da África e da Ásia são as fontes primárias de captação. Nos próximos três anos, o Cruzeiro vai abrigar 26 jogadores com menos de 16 anos bancados pelo governo do Cazaquistão. O Botafogo-SP também recebe intercambistas cazaques, além da China e do Benin, por meio de um acordo com o governo do país africano, ratificado pela Agência Brasileira de Cooperação. Alguns deles já disputaram o Paulista em categorias infantil e juvenil.
TRÁFICO NORMALIZADO
Arnold e Vincent desembarcaram no país para um intercâmbio no Olé Brasil, incorporado ao Botafogo-SP em 2012. Eles foram descobertos pelo empresário Fabrício Zanello, que excursionava ao redor do continente africano atrás de novos talentos em 2010. “Captei os atletas em campos de terra de Camarões. Só comiam uma vez por dia. Dei uma chance a eles, mas não tive retorno”, conta. Vincent acabou indo parar na Malásia, enquanto Arnold foi dispensado do Cruzeiro e se desentendeu com o agente. Aos 18 anos, teve de lidar com a saudade dos pais e o desemprego. “Não tinha dinheiro para voltar pra casa depois que saí do Cruzeiro. Fiquei sozinho aqui”, diz. No ano passado, cavou um espaço no Ceará e firmou seu primeiro contrato profissional.
Arnold disputou torneios pelo Cruzeiro | Crédito: Site Oficial do Cruzeiro
Sob o pretexto do intercâmbio, seis jogadores entre 14 e 16 anos da Guiné demoraram a descobrir que haviam sido enganados por um suposto empresário da capital, Conacri. Cada família pagou cerca de 10.000 reais pela viagem. Com visto de estudante, eles deixaram o país em 2014 com a promessa de jogar no São Paulo. Acabaram treinando na várzea e dormindo no chão de um alojamento precário. O agente sumiu e os garotos foram despejados. Acolhidos pelo ex-jogador Júnior Lima, vivem hoje em Santo André com os poucos recursos enviados mensalmente pelos familiares. Apenas um deles conseguiu voltar para casa.
Os outros seguem nutrindo a ilusão de vingar no futebol brasileiro. Saíram de Conacri amedrontados pelo surto de ebola, mas já admitem a possibilidade de retornar devido à falta de dinheiro. Eles não falam português e estão longe da escola. A Polícia Civil investigou o caso, mas o processo foi arquivado.
Meninos de Guiné levaram golpe de agente | Crédito: Alexandre Battibugli
Por se tratar de um continente pobre, com pouco investimento no futebol, a África é cada vez mais vulnerável a transferências internacionais por baixo dos panos e fornece mão de obra barata para os clubes receptores. Em 2008, equipes brasileiras chegaram a fechar meninos da Guiné que emproaram em dois barcos de refugiados no litoral do Rio Grande do Norte. Entre eles, Maza Sylla, que aos 17 anos jogou com Neymar na base do Santos.
Geralmente, porém, eles são oferecidos aos clubes por intermédio de agentes. Foi assim com Pascal Alima, outro camaronês que jogou no Cruzeiro com apenas 14 anos. Depois de três meses no time mineiro, um empresário o levou para a Argentina. Lá, foi forçado a assinar um documento declarando que seus pais estavam mortos, a fim de transferir sua guarda ao agente. “Isso eu não faço”, disse, na época. A recusa custou-lhe a carreira na América do Sul.
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Pelé exigem que clubes garantam educação, convívio familiar e contrato de trabalho a adolescentes mantidos em suas categorias de base. No caso de estrangeiros, raramente as condições são cumpridas. “O convívio com a família é um direito básico da criança, fundamental para sua formação e desenvolvimento”, diz Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, procuradora do Ministério Público do Trabalho. À margem dos garotos com contrato de formação no Londrina, Joel ficou mais de dois anos afastado da família, que continua vivendo em Camarões. Já Arnold não vê os pais há mais de cinco anos.
O Grêmio também tem um jogador camaronês. M. K., 15, passou pela base do São Paulo e defende o sub-16 do tricolor gaúcho, mas é impedido de disputar partidas oficiais, embora seu pai, Ermand Poka Pogne, tenha cidadania brasileira e more em São Paulo. Além do filho, Pogne, que se apresenta com o pseudônimo Love Kescelot e faz cursos de treinador na CBF, já recrutou outros dois jovens camaroneses para times da capital paulista.
Jogador sub-15 do Grêmio, filho de camaronês | Crédito: Arquivo Pessoal
Em 2008, ele abriu uma escolinha clandestina do Corinthians em Nkongsamba, mesma cidade de Joel, prometendo pinçar as revelações no Brasil. Procurado, o Corinthians diz que não mantém nenhuma filial em países africanos e já notificou o agente sobre a farsa. Pogne não foi encontrado pela reportagem.
Pai de joia gremista fundou falsa escolinha do Corinthians em Camarões | Crédito: Divulgação
“O futebol se estabelece como uma nova modalidade do tráfico de pessoas”, afirma Cristiane Lopes. “Um caso de sucesso, que é raro, não pode justificar vidas e infâncias perdidas pelo caminho.” O cruzeirense Joel, por sua vez, acredita que as privações de sua trajetória compensaram. Nas redes sociais, ele compartilha os feitos da carreira com compatriotas que vira e mexe imploram por conselhos para alcançar um lugar ao sol em gramados distantes. “Sou um exemplo para o povo da minha terra.
Nunca desisti do meu sonho”, diz. Joel simboliza um prodígio da consagração, mas Camarões e o restante da África seguem à mercê das negociatas por crianças e adolescentes de chuteiras.
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Em 2013, uma denúncia anônima chegou à sede da Fifa, na Suíça. O Barcelona teria 33 jogadores de outros países, menores de 18 anos, instalados em La Masia, o centro de formação das categorias de base. Entre eles, 15 africanos levados pelo atacante camaronês Samuel Eto’o por meio de sua fundação. Menos de um ano depois, o clube catalão foi sentenciado pela entidade máxima do futebol: multa de 1,15 milhão de reais e um ano sem poder fazer contratações.
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Embora a resolução de proteção a crianças e adolescentes conste no regulamento geral desde 2001, o Barcelona nunca havia tido problemas para regularizar seus talentos extracomunitários.
Apenas em 2009 a Fifa criou uma comissão especial para monitorar as transferências e o primeiro registro de atletas.
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